terça-feira, 24 de maio de 2011

Através de carta dirigida, a percepção aguçada de jovem médico sobre a profissão

Bom tarde,
Nunca me manifesto neste espaço e durante 8 anos vi muitas discussões teóricas aqui. Gostaria de expor um pouco da minha experiência na profissão como formado e residente para os que estão entrando agora ou tem uma visão utópica como muitos tem durante a faculdade. Meu interesse não é dar carteiraço, nem mostrar minha opinião como verdade. Mas perdi a paciência com oque andam falando de nossa classe e resolvi expor uns pontos de vista pessoais. Que não falam pela maioria, mas falam por mim que assinei a carta e me responsabilizo.
Se alguém quiser contrapor, fique a vontade. Com respeito e discussão melhoraremos nossa imagem perante o mundo ai fora ...
Abraço a todos.

Boa tarde Senhor Paulo Santana,
Tenho acompanhado nos últimos anos a enxurrada de críticas a saúde pública. Estando em contato diário com a área médica nos últimos 8 anos, venho compartilhar com o senhor, testemunha do esforço médico pela vida, minha visão sobre alguns aspectos que não são discutidos na sociedade sobre o papel do médico na sociedade.

Venho atuando na região de Caxias do Sul há quase dois anos e sou médico residente (pós-graduando). Estamos diante da falência do sistema de saúde e da credibilidade da saúde no brasil, estando apenas alguns nichos em grandes centros ainda se salvando. É atribuído aos médicos, problemas decorrentes da falta de atendimento
nos postos de saúde e pronto atendimentos em todo Brasil.

Vou expor a dificuldade da formação de um médico para o senhor. São 6 anos de estudo pesado na graduação, sendo na UFRGS 568 créditos contra 202 do curso de direito, ou seja, quase o triplo de carga horária teórica em relação ao o segundo maior. São mais de 10 mil horas de aulas teóricas e práticas, sem contar dezenas
de finais de semanas de estudo. Isto tudo para que? Muitos colegas pensam em ajudar o próximo como uma forma de realização pessoal; outros, por interesse em ter uma vida tranquila financeiramente com baixo risco, pois empregos existem em todos lugares.

Mas o em comum é que todos dão muito duro para entrar no curso, com esforços além do saudável com regimes extenuantes de estudo e muitas vezes uso de substâncias psicoativas para melhorar o desempenho e aumentar a concentração, um certo doping intelectual. Pois bem, vencida esta etapa que concentra os melhores e mais esforçados estudantes do Rio Grande do sul e do Brasil, vem o curso que não oferece nenhum estágio remunerado e ainda exige um investimento considerável em livros especializados. Os que não conseguem passar em federais são estorquidos pelo sonho que tem de ser médico, como em algumas faculdades particulares que cobram R$4.900,00 por mês a mais cara, porém não baixando de R$ 1800,00 no Rio Grande do Sul. Ainda por cima, não tem a qualidade garantida do curso como mostram os exames de avaliação de cursos. Na Argentina, por exemplo, o curso de medicina custa em torno de 300 pesos por mês.

Pois bem, terminada a graduação somos submetidos as provas de residência a qual não tem nem metade das vagas que para os que se formam, imagine que vão somando a cada ano mais 50% dos que se formam a briga por vaga. Ou seja, certas residências já estão muito mais difíceis que concursos públicos. E estamos falando de um público
selecionado que já passou por provas da qual é necessário estar entre os 1,95% com maiores notas em relação a todos no vestibular em todas matérias sem baixar este percentual em nenhuma sequer. Isto tudo nem chegamos no ponto que quero chegar. Os que não passam vão para o interior trabalhar sem a devida formação e dificilmente conseguem voltar devido ao isolamento do mundo científico e excesso de trabalho
que prefeitura exigem como 40h mais 10 plantões noturnos.

Na residência, temos um contrato que prevê alimentação e moradia e uma bolsa de aproximadamente R$ 2.300,00 que líquido seria uns dois mil reais por 60h semanais (nos EUA se paga em torno de $4,000 dólares e vai aumentando conforme vai evoluindo na residência, podendo chegar a 8,000 dólares. Porém há residentes que trabalham quase 120h no hospital, ou seja, com remuneração de R$ 4,00 a hora (este é um profissional formado com responsabilidade de médico em especialização). Isto é uma afronta ou um deboche do governo para com um profissional que fez tanto para chegar a tanto.

Como obviamente não ganhamos moradia como diz o contrato, temos que gastar quase
metade com moradia. Isto acaba fazendo com que muitos residentes trabalhem nas poucas horas vagas ao invés de estudar para sua especialidade. Portanto, cria-se um sub-emprego médico de um profissional extenuado de cansaço, uma bomba relógio pronta para errar.

Devido a este problema de saúde pública do Brasil, os melhores cérebros das universidades públicas e particulares fazem residência médica no exterior. Sendo valorizado, como o médico brasileiro geralmente é no exterior, acabam ficando por lá. Ocorre a verdadeira fuga de cérebros do nosso país. Com a conclusão da
especialização, vem o mercado de trabalho que oferece baixos salários nas cidades maiores.

Por exemplo, em Caxias a prefeitura petista resolveu igualar os salários de todos os cursos superiores, como se tivessem a mesma responsabilidade e grau de investimento em ensino. Então os médicos ganham 1.900 por 20h, assim como enfermeiras, biblioteconomistas, assistentes sociais, nutricionistas. Uma afronta a
classe médica com certeza. Não que as outras profissões não mereçam, mas igualdade foi a proposição comunista que já ruiu a muito tempo.

Sendo remunerado mal, o médico se vê obrigado a ter vários trabalhos( 4 ou 5 as vezes), emendando muitas horas de plantão seguidamente (OBS: médico é um pensador, um cientista, e não um trabalhador braçal). Não tendo tempo para atualização com periódicos científicos ou congressos. No caso, é primado pelo preço em detrimento
da qualidade. Não há plano de carreira no SUS. Um médico que vai para o interior por ter um salário um pouco melhor, acaba ficando 3 a 5 anos e retorna para o grande centro para tentar a vida. Não há política de incentivo a fixação do profissional no interior. Fazem o contrário, tentam regularizar profissionais de outros país de ensino questionável para baratear os custos, ou pior inchar o mercado com excesso de escolas médicas de qualidade ainda mais questionável ainda.

Além disso, não há incentivo a especialização, no bico que faço em uma empresa privada, ganho mais por hora que um professor universitário com PHD. Uma vergonha. Por isso que digo que ainda existem ilhas de medicina neste país, pois quem tem interesse em conhecimento, independência financeira muitas vezes de família e não
se importa de ganhar mal, acaba indo para hospitais universitários como docente. Tendo tempo para aperfeiçoar-se, descansar, trabalhar,etc.

Hoje um médico para ganhar 10 mil reais em um centro tem que se dividir em muitos, gastar muita gasolina, não estudar e atender uma população que muitas vezes não tem o mínimo respeito a este profissional por acha-lo um proletário médico. Bem, alguém dirá: mas por que não fazem greve? Veja bem, em Caxias foi feito greve para salários mais justos, o que aconteceu? Um promotor público entrou com ação impugnando a greve. Este mesmo senhor que ganha mais de 20 mil reais para trabalhar 40h semanais tendo estudado menos muitas vezes do que um médico razoável, parece não compreender o problema social disso tudo.

Alguém, mandou uma carta ao jornal Pioneiro de Caxias do Sul e disse que era um absurdo o médico pedir 9 mil reais por 20h, ou seja, o piso salarial da carreira, hoje ganham 1.900 pelo período, que um metalúrgico demora quanto tempo para ganhar isso. Na minha opinião é o mesmo que comparar um juiz com uma faxineira, duas
profissões dignas, mas que exigem diferentes níveis de investimentos em estudo, com muita diferença de responsabilidade.

O médico é mal remunerado, trabalha muito acima das possibilidades ( o CFM manda atendermos no máximo 4 pacientes por hora) muitas vezes fazendo 40 consultas em 4h para compensar as filas do SUS. Por pura bondade, a obrigação não é do médico atender mais, e sim do secretário de saúde colocar mais médicos para população
necessitada. Estamos vivendo um dia-dia de superlotação nas emergências. Para quem não é médico não parece tão problemático, mas é muito perigoso isso; explico, quando estamos trabalhando no interior e temos um paciente grave na mão sem estrutura para atendê-lo, fazemos contato com hospitais de referência que como estão lotados, não aceitam esse paciente. Assim, muitos acabam morrendo no interior pela dificuldade de chegar a um centro de referência.

Devido a esta Bósnia que vivemos, estamos sobrecarregados e cansados. Desde que a Constituição foi modificada e o estado virou o responsável pela saúde, nós médicos nos tornamos proletários da saúde, ganhando menos que a enfermagem em alguns
lugares. Todos acham que são nossos patrões, desde o camelô ao empresário. Achando no direito de ir consultar a hora que quiser pelo motivo que for. Eu já passei a noite inteira atendendo resfriado leve, tendo que trabalhar 18h no outro dia. Muito complicado ter paciencia.

Ainda para completar, criou-se o mercado do processo contra médicos que tende a distanciar ainda mais o médico de seus pacientes criando-se uma relação apenas de prestação de serviço.
Só fazendo um adendo fora de contexto, por falar em Constituição. Acho que deveria ser modificado o texto na parte que diz que é .... dever do estado a saúde ... para ... é dever do estado a saúde básica e intermediária .... Pois a avançada gera custos astronômicos para o sistema, como a enzima para a doença de Gauchet, é
o segundo medicamento que o governo mais gasta, só perdendo para os anti-hipertensivos. Sendo que existem 550 pacientes com Gauchet no Brasil ao custo de R$84 milhões de dólares.Conseguidos na justiça devido a bendita Constituição. Até onde vai o direito destes cidadãos?? Até onde começa o dos outros que quando vão ao posto pegar remédio e não tem, ficam sem tomar e tem desfechos negativos devido ao desvio de recursos absurdos, criados pelos viéses de uma constituição
paternalista que não cobra deveres e dá excesso de direitos.

A mídia tem colocado o médico como vilão nos casos de falta de atendimentos diversos. Como na reportagem do fantástico, que colocou em pauta a falta de pediatras. Ficou implícito na reportagem que os médicos não queriam mais a pediatria porque oque queriam era dinheiro.

Em um país rico como o nosso em que um político custa uma fortuna, um juiz ganha de acordo com o que estudou, assim como o promotor, que barrou a greve, nada mais justo, do que pagar bem o profissional que cuida da vida (um dos três bens maiores da sociedade, assim como a liberdade e o patrimônio, que são bem valorizados através
do judiciário).

Acho que escolhi a profissão certa para mim, pois gosto de atender as pessoas e ajudar. Mas também não posso ficar alheio a palhaçada que está virando o SUS e a chacota que a classe médica está sendo submetida pelo governo. Nada mais previsível que a educação fique em segundo plano em um país que elege o Tiririca e o Romário
para deputados federais. Estes com certeza não lutarão pela emenda Constitucional 29 que parece que é a única forma de salvar o SUS.

Sem me estender muito mais, na faculdade o aluno é ensinado a doar seu serviço e ,se falar em remuneração, é taxado de mercenário. Os médicos querem apenas poder trabalhar um pouco menos e poder se aperfeiçoar na profissão. Se for diferente disso, ainda haverá muitas fugas de cérebros com razão. A Austrália é um país que
facilita a naturalização de profissionais com nível superior que venham agregar, enquanto nós facilitamos a naturalização de cubanos foragidos e banqueiros de colarinho branco com condenação em outros países. Será que sou uma voz sozinha na classe? Com certeza não, perante as barbaridades que se houve a cada dia na imprensa é melhor se alienar, pois lutar contra um país que o estudioso é o nerd e o
bagunceiro, o exemplo, é impossível.

Enquanto isso, vamos tocando o serviço médico cansado, ouvindo baixarias desrespeitosas de quem não paga impostos e nós seguimos pagando 27,5% para pagar nossos próprios salários miseráveis como proletários médicos que somos.

Um abraço de um médico recém-formado, com 26 anos, e essa compreensão da profissão, atuando por amor a camisa.


Dr Luiz Felipe Teer de Vasconcellos

Médico CREMERS 33.943


Fonte: Fórum Dignidade Médica

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