terça-feira, 15 de março de 2011

Apagão na saúde suplementar no horizonte

Dr . Mário Ferrari

A dificuldade de acesso dos consumidores de planos de saúde ao atendimento médico e a timidez na regulação da relação entre os Prestadores e Operadoras de Planos de Saúde (OPS), observados desde o início da regulação, torna questionável a eficácia e a necessidade do modelo regulatório implantado pelos neoliberais no final dos anos noventa.
A redução direta do papel regulador do estado, surgida com a criação de certas agências reguladoras, sinaliza obrigatória revisão.
O alerta não é só em face da possibilidade de apagões nos transportes (aéreo, naval e terrestre) e na distribuição de energia elétrica. O próximo alvo é o temido apagão na saúde suplementar.
Mais que 40 milhões de consumidores podem perder acesso ao atendimento médico etereamente oferecido pela maioria dos planos de saúde que, nada mais fazem que “vender” uma relação de nomes constantes nos seus livrinhos.
Enquanto a ANS se fez presente por anos a fio estabelecendo índices de correção para os planos de saúde, se revelou ausente e com dificuldades em operacionalizar a correção qualificada dos honorários médicos. Como se essa falta não produzisse impactos na relação de consumo existente entre planos de saúde e consumidores.
A interpretação restritiva da lei que criou a Agência sugere esperança de que por obra divina o “deus mercado” resolva impasses dessa ordem. O trabalho dos médicos não pode e não deve ser considerado como mais um produto do chamado mercado.
Esse descuido regulatório atinge diretamente trabalhadores da saúde, principalmente os médicos, e indiretamente os consumidores dos planos privados de saúde. A manutenção dos consultórios se torna inviável e o atendimento aos pacientes é colocado em risco.
Crescem os descredenciamentos. Os pacientes sentem na pele, a cada dia, a dificuldade de acesso e o aumento dos prazos para agendamento de consultas. O acesso a certas especialidades já não é mais possível em algumas regiões do país. Esperar que o “mercado” regule relações tão peculiares seria cômico se não fosse trágico.
Há noticias de que os urologistas em Maceió não mais atenderão os planos de saúde. Os médicos cuidam da vida, tratam pessoas que padecem de dores e sofrimentos psíquicos. Assim, não há que se falar em relações econômicas e/ou de consumo. A relação que deve ser privilegiada é a entre médicos e pacientes, e não a dos intermediários.
A mediação do conflito entre as regras de direito do consumidor, direito econômico e o direito social trabalhista dos médicos já chegou ao ministério público do trabalho em Brasília, onde se procura solução ao impasse.
Nas rodadas de mediação verificou-se maior resistência nos órgãos de defesa da atividade econômica ligados ao ministério da Justiça.
Em nome da regulação da livre concorrência vale até ressuscitar o pensamento da grande revolução burguesa do século dezoito. Na última tentativa de mediação levada a efeito na Procuradoria Geral do Trabalho a SDE resgatou o pensamento da Lei Le Chapelier, da época revolução francesa.
Em 1789 a revolução burguesa acontecida naquele país tentou separar os profissionais liberais do povo. Um dos mecanismos foi a Lei Le Chapelier (1791), inspirada no ideário liberal de Adam Smith. A razão divulgada para sua elaboração era impedir a articulação desses profissionais para majorar preços.
Na verdade a preocupação das elites era interferir na, já consolidada, relação dos profissionais liberais com o povo. Fato que havia contribuído para a queda do antigo regime absolutista.
O texto de Le Chapelier impedia e punia, com penas severas, as reuniões e a associação entre os profissionais, liberais ou não. Esse pensamento, contrário às corporações de trabalho que construíram as catedrais, inviabilizou a organização associativa dos trabalhadores no século seguinte enquadrando-a como crime.
Só nos primeiros decênios do século XX as organizações sindicais foram aceitas e previstas em lei. A constituição de 1988 reconheceu o direito de associação e a liberdade sindical atribuindo aos sindicatos o direito/dever de reivindicar os direitos dos trabalhadores.
Foi com a luta organizada dos trabalhadores que se construiu a possibilidade de que um deles chegasse ao cargo de maior importância, a chefia do estado brasileiro.
Apesar disso, mesmo depois de oito anos de governo Lula, o discurso de Smith, resgatado pelos neoliberais, ainda contamina o âmago da máquina pública. Contagia jovens servidores públicos.
Alienados do que ocorre no mundo, ainda falam de um deus mercado, deposto pela crise econômica que assola o mundo. Afirmam sem qualquer afetividade que o requerimento de negociação coletiva das regras por melhores condições de trabalho e remuneratórias para os médicos atentam contra a regulação do mercado dos planos de saúde. É o mercado, o mercado, é o mercado!
À correção regulada dos planos de saúde não foi aplicada a mesma lógica, a fórmula foi outra. Ou seja, as operadoras e seguradoras de planos de saúde sequer precisam da atuação de seus sindicatos para conduzir reivindicações. Pela ação ou inação têm o poder regulatório das “agências” do seu lado.
Na última audiência, com absoluta tranqüilidade, a representante da SDE sustentou que os médicos que prestam serviços autonomamente para os planos de saúde não teriam o direito constitucional consignado aos demais trabalhadores e não poderiam ter seus direitos trabalhistas negociados coletivamente. Não teriam o direito a reajustes anuais dos honorários celebrados coletivamente com a interveniência de seus órgãos de defesa da profissão.
A SDE, em nome de princípios de direito, informou aos presentes que a negociação coletiva não é possível em função dos impactos na livre concorrência. Destacou que negociações coletivas intermediadas por sociedades de especialidades já se encontram sob investigação naquele órgão do ministério da Justiça.
Tem-se, portanto, um dilema, enquanto os trabalhadores da indústria e do comércio podem celebrar contratos coletivos os da saúde, porque atuam autonomamente, não teriam esse direito.
Não é a toa que as ações judiciais promovidas pelas operadoras de planos de saúde contra entidades médicas batem na mesma tecla. Inspiram-se lá e cá. Algumas delas chegam mesmo a reproduzir a lei francesa de 1791.
Pedem punições que inviabilizam o direito de reunião. Acusam a prática de reunir, para a definição de estratégias reivindicatórias em relação ao valor ético do trabalho, de cartel.
Felizmente decisões judiciais não têm acolhido as teses do liberalismo antepassado.
Remover as barreiras de questão dessa complexidade com as posições de setores de defesa do direito econômico, do consumo, posições da ANS e do trabalho requer efetiva mediação do ministério público do trabalho.
Espera-se solução satisfatória que remova as barreiras dos agentes públicos para que o debate alcance os terceiros interessados coletivamente. O que está em causa é a segurança da população que usa os planos.
No equivoco da argumentação, de prevalência dos interesses econômicos em relação aos interesses (sociais) dos trabalhadores/consumidores, se encontra a gênese dos apagões. Em cheque a existência dessas agências quase reguladoras. No horizonte, nuvens escuras de mais um apagão, o da saúde suplementar.
A relação médico-paciente não será apagada, não pode ser vista como questão de mercancia! Saúde não tem preço, médico tem valor!
* Mario Antonio Ferrari – presidente do Sindicato dos Médicos no Estado do Paraná (SIMEPAR); secretário geral da Federação Nacional dos Médicos (FENAM); secretário de saúde da seccional Paraná da Confederação dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB). Fevereiro/2011. simepar.org.br

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